O tema de hoje, além de polêmico, há muito tem sido mal compreendido pela jurisprudência. E o Novo Código, na nossa visão, infelizmente acabou por contribuir ainda mais com essa confusão.
De início, cabe destacar que a fraude à execução é instituto de direito processual que se liga a um fenômeno endoprocessual (com consequências para fora do processo) e que, de acordo com o art. 593 do CPC/73, “deve ser entendida como a declaração da ineficácia da alienação ou da oneração de bens que dificulta ou inviabiliza a prestação da tutela jurisdicional quando dirigida ao patrimônio amplamente considerado (execução por quantia certa) ou, mais especificamente, a um dado bem especificamente considerado no patrimônio do executado (execução para entrega de coisa).” (Cássio Scarpinella BUENO, Curso sistematizado de direito processual civil, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 220).
Na fraude à execução, portanto, não se fala no plano da validade do negócio jurídico, mas em específica ineficácia em relação ao exequente (STJ, REsp 1.141.990). Essa ineficácia não opera efeitos perante outros credores. Portanto, “dois requisitos formam a fraude contra o processo executivo: a litispendência e a frustração dos meios executórios.” (Araken de ASSIS, Manual da execução, São Paulo: RT, 2010, p. 297).
Diferente, portanto, da fraude contra credores, espécie de vício social que se configura a partir da violação à lei e é causa de anulabilidade do negócio jurídico praticado (CC, arts. 158, caput, 165 e 171, II), conceituando-se, de maneira ampla, como “o artifício malicioso empregado para prejudicar terceiros. Compõe-se de dois elementos: um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo (eventos damni) é todo negócio prejudicial ao credor, por tornar o devedor insolvente, ou por ter sido praticado em estado de insolvência. No primeiro caso, entre o negócio do devedor e a insolvência deste, deve estar entremeado, evidente, o nexo causal, a relação de causa e efeito. O elemento subjetivo (consilium fraudis) é a má-fé, o intuito malicioso de prejudicar. Pode advir do devedor, isoladamente, como na renúncia de herança, ou do devedor aliado a terceiro, como na venda fraudulenta. Na conceituação de consilium fraudis não tem relevância o animus nocendi, o propósito deliberado de prejudicar credores. Basta que o devedor tenha consciência de que de seu ato advirão prejuízos. A fraude pode existir sem ser premeditada (fraus non in consilio, sed in evento).” (Washington de BARROS MONTEIRO e Ana Cristina de Barros Monteiro França PINTO, Curso de direito civil, São Paulo: Saraiva, 2009, p.273).
A fraude à execução, portanto, prescinde da análise do elemento subjetivo, justamente por se relacionar intimamente a uma verdadeira afronta à dignidade da justiça, tal como estampado no inciso I do art. 600 do CPC/73, ainda que a multa seja revertida em proveito do credor (também “vítima” da fraude – art. 601).
Esse raciocínio fica ainda mais forte com a lembrança de que a fraude à execução é crime, tipificado no art. 179 do Código Penal Brasileiro.
Entretanto, desprezando a essência do instituto da fraude à execução, bem como toda a construção doutrinária que se fez a respeito, o STJ, a partir de seus julgados e da edição do Enunciado nº 375 de sua Súmula (“O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”), instituiu o elemento subjetivo na análise da fraude à execução e ainda, na nossa visão, impôs ao credor uma verdadeira prova diabólica nesses casos, trazendo situação processual muito mais vantajosa aos fraudadores do que ao próprio credor.
A divergência contida no voto da Ministra Nancy Andrighi no âmbito do julgamento do recurso especial nº 956.943/PR, submetido ao rito dos repetitivos (CPC/73, art. 543-C), ilustra bastante essa discussão. No entanto, as propostas feitas por ela, com o objetivo de finalmente bem interpretar o instituto da fraude à execução e mudar os rumos da equivocada jurisprudência da Corte, não foram seguidas pelos demais julgadores.
A questão não está na presunção absoluta de má-fé quando existe averbação da penhora no registro imobiliário, por exemplo, mas sim no fato de que, inexistindo a referida averbação, a má-fé continua sendo presumida, ainda que de maneira relativa, tanto em relação ao terceiro adquirente, que terá de provar a sua boa-fé no caso concreto, quanto em relação ao devedor.
O NCPC, em seu art. 792, notadamente prestigia a presunção absoluta de má-fé advinda da averbação, mas infelizmente não deixa claro que, inexistindo averbação, a má-fé continuará sendo relativamente presumida. Por outro lado, o §2º do mesmo dispositivo deixa expresso que caberá ao terceiro adquirente, que deverá ser citado antes de o juiz declarar a fraude à execução (§4º), no caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
A interpretação correta do instituto continua sendo possível, tal como felizmente ressalta a conclusão de Erik Navarro WOLKART sobre o tema: “Em termos práticos, caso o exequente não tenha averbado o arresto ou a penhora, as chances de procedência dos embargos de terceiro – com a consequente manutenção da alienação e frustração da execução – são enormes. Salvo se interpretarmos a nova norma no sentido de que, se o registro gera presunção absoluta de fraude, a existência da execução com citação geraria, por si só, presunção relativa. Nesse último caso, o STJ é que deverá rever o revogar o verbete 375.” (Breves comentários ao novo código de processo civil, São Paulo: RT, p. 1884-1885).
Embora não tenha esperança de que o STJ irá seguir a orientação da Ministra Nancy Andrighi e rever o seu posicionamento quanto à fraude à execução, parece-nos que o Novo Código servirá, ao menos, para revogar a segunda parte do Enunciado nº 375 da Súmula do Tribunal da Cidadania, justamente em virtude do disposto no supramencionado art. 792, §2º.
Nesse sentido é o posicionamento de Teresa Arruda Alvim WAMBIER, Maria Lúcia Lins CONCEIÇÃO, Leonardo Ferres da Silva RIBEIRO e Rogerio Licastro Torres de MELLO: “Como se vê, diante do NCPC o entendimento jurisprudencial que impõe ao exequente provar a má-fé do adquirente deve necessariamente ser alterado. Há, por força de lei, inversão no ônus desta prova, cabendo ao terceiro adquirente fazer prova de sua boa-fé e não o contrário. A Súmula 375 do STJ deve ser, na sua segunda parte, revogada, só se justificando sua manutenção quanto à exigência da citação.” (Primeiros comentários ao novo código de processo civil, São Paulo: RT, p. 1146-1147).
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